O MUNDO SEM DOR


 O Mundo sem Dor

Toda a ênfase deste capítulo podia ser representada por uma página em branco. A evolução da dor equivaleria à instalação universal do nada, esse conceito vazio, segundo Kant, esse zero absoluto da antirealidade, essa negação da negação, em termos dialéticos; seria o princípio de tudo o que não é nem pode ser. Pitágoras, para figurar a solidão de Deus antes da Criação, recorreu à ideia do Uno, o número 1, sem procedência nem consequência, imóvel no Inefável. Sartre, em nosso tempo doloroso, para devolver o homem ao nada de que teria saído, teve de recorrer à contradição de uma fórmula dialética que levaria o pensamento à frustração total de si mesmo.

Não há saída para a ideia do nada, senão no solipsismo da volta ao nada, que nada é nem pode ser. A imaginação pitagórica teve pelo menos a coerência de recorrer ao acaso, admitindo um estremecimento do 1 no inefável, que multiplicaria a unidade, desencadeando a Década, o número 10 que deu nascimento ao Todo.
Filósofos e teólogos cristãos vangloriam-se até hoje da originalidade da Bíblia, que fez Deus tirar o mundo do nada, tirar o real do irreal. Mas a Bíblia é um livro judeu e não cristão. Configura-se nessa vanglória a glória vã de um roubo do nada. Na verdade, o nada só pode existir em termos de relatividade, o que, subordinando-o ao todo, anula toda a sua pretensão existencial. Para o nada existir seria necessária a existência dos elementos formais do nada, que não seriam “nada”, mas alguma coisa.
Tudo isso pode parecer uma cogitação vazia, mas não é, pois se processa nos quadros históricos do pensamento antigo e moderno, levando-nos a uma conclusão mentalmente objetiva: o nada é uma impossibilidade do pensamento.
Como a dor é um elemento do sensível, chegamos a outra conclusão inevitável: o mundo sem dor é uma abstração gratuita que só existiria no imaginário absoluto e inconsequente, pois a exclusão da dor implicaria necessariamente a inexistência de qualquer atividade. Seria o mundo da morte absoluta, sem a esperança da ressurreição, que acarretaria a dor absoluta. Nesse solipsismo do absurdo chegamos a outra impossibilidade do pensamento: a da definição absoluta de Deus. Nada mais podemos fazer do que aceitar a sua realidade como ela se apresenta na introjeção imemorial da nossa consciência profunda, em que Descartes a encontrou na sua cogitação assombrosa, ou negá-la, negando ao mesmo tempo toda a realidade.

Essa exigência da negação total decorre das condições epistemológicas da nossa cultura, que não permite mais a fragmentação do saber, com as posições ilhadas de campos gnosiológicos ilhados e enfeudados em províncias espúrias do Conhecimento. Hoje o Conhecimento é um só, o maciço do Saber, não admitindo uma Ciência dos homens mais do que homens e outra dos homens simplesmente homens da divisão estratégica de Descartes. A unificação do Ser produziu, ao mesmo tempo, a fragmentação profissional das especialidades, no plano da prática científica, e massividade da generalização globalizante.

Ou admitimos a existência de Deus como Consciência Cósmica abrangente ou a rejeitamos como impossibilidade lógica (na Lógica Antiga e na Lógica Moderna), de maneira que os capatazes de Deus foram banidos de seus cargos e expulsos do processo cultural.

Foi o que Dilthey colocou de maneira precisa em seu ensaio sobre A Tragédia da Cultura, em que o aumento de conhecimentos supera a capacidade individual da mente humana. A Filosofia das Ciências abrangeu numa visão gestáltica, globalizante, os setores dispersos da investigação. A crença foi afastada como posição ingênua do passado e a fé tornou-se conhecimento comprovado. Kardec postulou a prevalência da fé como certeza decorrente da experiência e da prova. Foi ainda mais longe, mostrando que a Revelação, instrumento divino do Saber, é ao mesmo tempo humana e divina, pois os cientistas revelam com mais segurança que os profetas. Denis Bradley, ante as experiências mediúnicas de que participou nos Estados Unidos, proclamou: “Eu não creio, eu sei!” John Laurence, biofísico da NASA, declarou num simpósio em São Paulo: “O núcleo do átomo não tem massa e rege a constelação atômica. Tentamos agora descobrir o núcleo do homem”. Essa visão científica e geral da realidade não permite mais a antinomia crença e s aber, que propiciou no passado sombrio o poder eclesiástico sem limites do fanatismo religioso.

Não há mais lugar para fanatismos de qualquer espécie no mundo atual, iluminado pelas esperanças da Era Cósmica.

Os fanáticos ideológicos são os últimos abencerrages do nosso século, condenados de maneira inapelável à extinção total.

Os espíritas, primeiros chamados para a compreensão da Ciência Integral – e que na sua maioria refugiaram-se num beatismo de sacristia –, estão intimados a alijar dos ombros as cargas do misticismo igrejeiro para poderem assumir a herança do século. O conhecimento epidérmico da doutrina que herdaram os transformaram em adversários de si mesmos. Só lhes resta um caminho a seguir: o rompimento com os compromissos sectários das religiões formalistas em que foram criados e alimentados, pelo aprofundamento corajoso no estudo dos seus princípios doutrinários.

A deformação sistemática do homem, no mundo inteiro, pelos teólogos e clérigos, na exploração do medo à morte, no terror do sagrado e no comércio deslavado da simonia, transformou os homens em criaturas servis, hipócritas e levianas, incapazes de encarar com seriedade e coragem os problemas espirituais. A raça de víboras que o Cristo enfrentou e denunciou em Jerusalém espalhou-se por toda a Terra, contagiando a Humanidade. O meio espírita não podia escapar a esse contágio. A mais vigorosa e libertária doutrina já surgida no mundo converteu-se, nas mãos de multidões ignorantes e obtusas, em novo muro de lamentações. Os beatos das religiões dogmáticas trocaram de pele mas não perderam suas manhas. Substituíram os ritos católicos pelos passes e preces, a água benta pela água fluídica e os rosários de repetições medrosas pelos colares de contas de Ifá, na magia primitiva das religiões mágicas da selva, negras e indígenas.

A marafa ou cachaça de álcool de cana, principalmente na América, substituiu nos batuques da macumba os vinhos sacramentais de uva. No pandemônio das superstições os deuses africanos e americanos demonstraram aos ingênuos que a sabe-doria divina não está nos livros, mas na boca dos exus, no batuque dos tambores e nas defumações de charutos e ervas milagrosas. A miscigenação religiosa (na verdade mágica e selvagem) gerou então as religiões mestiças de que tratou Euclides da Cunha, sucedâneos mais fáceis dos complicados sacramentos dos padres paramentados.

A linguagem e os ritos da selva substituíram os instrumentos sagrados de ouro e prata e o latim incompreensível. As práticas da Goécia arcaica, ou magia negra, os batismos de sangue animal em cabeças raspadas e humilhadas derrotaram os ritos batismais de água. Era inevitável o abandono do livro, do estudo, da reflexão sobre problemas superiores, nesse meio bastardo em que o analfabetismo e a ignorância eram regra e praxe de virtudes salvadoras.
No meio espírita a infiltração das práticas selvagens, graças ao analfabetismo geral e a repulsa das criaturas simples aos problemas culturais, conseguiu infiltrar-se. A confusão comodista entre simplicidade e estupidez levou muitos espíritas simplórios a deixar a doutrina de lado como inútil invenção de gente letrada e vaidosa. Nos meios culturais o reflexo dessa situação desastrosa levou comodistas altamente considerados a moverem campanhas difamatórias contra a doutrina e seus adeptos, em nome de um Cristianismo desfigurado e de uma cultura científica mentirosa. A obra de Kardec ficou confinada a poucas pessoas de bom-senso e livres de preconceitos. Era mais uma curiosidade do século XIX do que uma formulação doutrinária superior. Como se isso não bastasse, criaturas de pretensa sapiência, consideradas semi sábias por seus títulos acadêmicos, num meio em que a cultura era luxo e não dever, aceitaram mistificações ridículas como a de Roustaing como complemento necessário da obra kardeciana, “mais voltada para a Ciência dos homens do que para a Ciência divina”. Como pode manter-se, até hoje, em instituição respeitável por seu passado essa mixórdia indigna?
Toda uma mitologia do absurdo se mistura às realidades claras da doutrina kardeciana, a começar pelo nascimento mitológico de Jesus, gerado numa falsa gravidez de tipo histérico na reformulação dos evangelhos por entidades visivelmente trapaceiras com a finalidade única de ridicularizar a doutrina racional e científica do Espiritismo. Entretanto, na mesma hora que isso acontece, as Ciências confirmam em suas pesquisas, sem o saber e sem o querer, os princípios da doutrina ultrajada e rejeitada.
Não precisaríamos de mais evidente prova da impossibilidade de um mundo sem dor. O ensino e abnegação de Jesus transforma-se historicamente em motivos de lutas sangrentas por dois milênios. A obra modelar de Kardec – modelo de racionalidade, fundada em pesquisas científicas da fenomenologia paranormal, modelo de critério científico, modelo de abertura para novas perspectivas no campo do Conhecimento, modelo de respeito às leis naturais, modelo de correção justa e pacífica dos erros clamorosos do passado, modelo cartesiano da busca da verdade sem precipitação e sem preconceitos, foi simplesmente rejeitada como anticientífica e supersticiosa por abrir às Ciências novos caminhos de busca no sensível e no inteligível. Não faltava, sequer, ao mestre sacrificado, as credenciais da cultura universitária, como pedagogo, continuador da obra de Pestalozzi, médico e professor de Ciências Médicas, diretor de estudos da Universidade de Paris, com suas obras aprovadas e adotadas pela Universidade. O que houve de dor nesse episódio histórico moderno foi suficiente para provar que estamos ainda muito longe de podermos sonhar com um mundo de paz eterna, como queria Kant. Sofreu Kardec, sofreu sua esposa Amélie Boudet, sofreram os companheiros e colaboradores do mestre. Porque toda luta pela evolução, nos mundos inferiores, é sempre marcada pela dor em todos os seus aspectos.
Mas agora, que até mesmo na área materialista ideológica da Terra, a obra de Kardec se impõe por sua inegável legitimidade, é necessário que os espíritas enfrentem a grande tarefa de estudá-la, pesquisá-la e elevá-la ao plano que lhe cabe na atualidade. Estudar Kardec, pondo de lado todas as tentativas de desfiguração da mesma que foram semeadas no meio doutrinário por seus pretensos superadores, já é uma contribuição, por modesta que seja, ao reconhecimento da abnegação do mestre. E mais do que isso, o estudo sério, consciencioso e respeitoso dessa obra monumental é um dever de todos os que a seguem como filosofia de vida, mesmo que tropeçando nas pedras do caminho. Essa obra representa um momento culminante do desenvolvimento cultural da Terra. E a Terra necessita dela, hoje mais do que nunca. Se o movimento espírita não revelar condições para compreender a herança kardeciana, estaremos falidos perante nós mesmos.

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Fonte: livro – Herculano Pires: o mistério do Ser ante a dor e a morte

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